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Yoga como Práxis Ecológica: habitar o corpo ressoando com o cosmos

O modo de vida atual, impulsionado pela internacionalização do modo capitalista de produção, pela revolução industrial e tecnológica, resultou em uma desconexão entre ser humano e natureza. Essa desconexão é apontada como sendo um fator causal proeminente de estresse, ansiedade e depressão, condições que, por sua vez, estão entre os principais causadores de graves doenças, notadamente as degenerativas e as autoimunes. Este contexto trouxe a necessidade, cada vez mais percebida pelas populações de todo o mundo, de uma reconexão entre ser humano e natureza. Para isso, podemos (e devemos) fazer passeios em florestas, montanhas ou praias, morar mais perto de matas, ou pelo menos de locais mais arborizados com águas correntes e despoluídas, facilitar o acesso à eles respeitando e auxiliando na regeneração destes e de outros lugares. Podemos também, sobretudo, nos encontrar com a natureza que somos, em nós.

Para uma experiência no planeta com maior qualidade de vida, cultivar uma relação profunda e saudável com nosso corpo é uma forma de vivenciar de perto a natureza; vivenciar-nos como um órgão do organismo maior: Gaia; como uma célula do Universo inteiro, respirando no “corpo cósmico” como nossas células respiram dentro de nosso corpo, uma onda sonora no “oceano vibracional infinito que é o Universo. Um caminho para desenvolver essa relação foi chamado em sânscrito de yoga, e foi experimentado e sistematizado durante milhares de anos por alguns povos do mundo – notadamente povos que se organizaram às margens do rio Indo (e como reivindicam elaborações atuais, também do rio Nilo).

Com o objetivo de proporcionar uma experiência única e autêntica de yoga, o que é proposto aqui é a ousadia de ir ao encontro – sem a pretensão ingênua de alcançar – do que é elementar nessa prática milenar, acabando por descobrir o yoga em nós, por nos encontrar conosco reconhecendo-nos na ancestralidade do inconsciente coletivo que compartilhamos e que nos atravessa, em nossa natureza. Propõem-se uma prática que é uma respeitosa provocação à expansão do nosso entendimento em relação à tecnologia ióguica. Com reverência à tradição, embasamento histórico e científico, estudo e práticas diversas, é um convite à nos relacionarmos com os contornos “litúrgicos” e metodológicos de forma contextualizada, nos descolonizando do que muitas vezes se torna um muro que acaba por nos separar de nossa natureza – essa, a todo tempo sendo criada, conservada e destruída em seu corpo-psique, em sua mente-coração. Tendo a ciência como um contorno de referência que baliza nosso exercício ético, propõe-se a vivência fenomênica e decolonial de uma devoção laica direcionada à força propulsora do viver-morrer e suas manifestações compostas de terra, água, fogo, ar e éter. Vivência em que devolvemos o sagrado à nossa relação conosco, em nossa profundidade elemental, profanamente virgem, e tão violentada pela perda de sentido causada pela alienação da natureza, ou seja, de nós mesmas.

Embrenhando então em nosso ser, encontramos diversas encruzilhadas. Uma prática de yoga no Brasil atual precisa se situar nas esquinas onde os saberes das margens do rio Indo se encontram com outras margens; onde o Indo se encontra com as águas das diversas cosmologias existentes neste território; onde se encontram as águas dos saberes dos povos ameríndios e afro-diaspóricos, que ficaram na margem; onde se encontram conhecimentos que emergiram da relação profunda desses povos com a natureza daqui, através de seus corpos, ao longo de milhares de anos. As esquinas onde se encontram essas cosmovisões são atravessadas também pela experiência psicossocial particular de cada corpo neste espaço-tempo. A tensão existente nas encruzilhadas é que fertiliza nossa jornada.

Na proposta que fundamenta nossa prática existe um diálogo frutífero entre saberes tradicionais, ciência e o fenômeno da própria experiência in loco. Esse diálogo vai sendo tecido por entre técnicas de respiração; movimentos; posturas; exercícios de concentração, visualização e imaginação dirigida; relaxamento; sons; música e dança. Assim, através de uma prática corporal energética e potente, uma relação profunda e sagrada com o corpo vai sendo cultivada passo à passo. Com a inspiração dos povos que vieram antes, cada praticante vai recebendo acompanhamento e encorajamento para cuidadosa e amorosamente vivenciar seus próprios limites, respeitando, acolhendo e transformando, expandindo sua consciência em relação a si, seus ritmos e ciclos, treinando a habilidade de relaxar nas tensões motrizes da existência, aprendendo a se habitar se ecologizando.

Em nossas práticas regulares, uma das peças centrais do trabalho, quase sempre utilizadas, são kriyas de kundalini yoga. A palavra sânscrita kriya é traduzida como “ação completa”; neste caso o entendimento é de uma totalidade composta por uma ou diversas e diversificadas partes: exercícios de yoga que juntos, em uma sequência e ordenação próprias, conduzem, à partir de uma autodisciplina, esforço e intenção iniciais, para uma entrega à uma fluidez rítmica que da a luz à um objetivo específico e realizam, no percurso, a renovação integrada dos canais sutis de energia (nadis). A palavra yoga pode ser traduzida como “integração” e também como “força”. Kundalini é como foi chamada em sânscrito a energia criativa do universo que parece se desenrolar em nosso corpo, iluminando nossos “centros vitais” (chakras) e despertando a nossa consciência, abrindo nossos olhos internos para o invisível (depois torna a enrolar). Kundalini yoga é o yoga da consciência, tecnologia milenar derivada do tantra matriarcal pré-védico, e adaptado à atualidade e ao ocidente à partir de 1960 d.c. pelo indiano Yogi Bhajan e seus alunos. O kriya é mantido em sua integridade e encontra com outras técnicas do yoga em geral, do corpo e do som, elementos da cultura popular e etc. realizando com respeito os diálogos que emergem.

Como aprendemos no Brasil com povos fons e yorubás, dos atuais Benim e Nigéria, fomos moldados pelo barro de Nanã. O corpo humano vivo foi denominado por povos incas do atual Perú de alpa camasca, termo que pode ser traduzido como “terra animada”, ou seja, um pedaço da Terra que caminha. Alguns povo do Brasil se denominam como Tupy, Tu – som, e Py – pé, assento. No entendimento que inspira essa proposta de yoga, esses pedaços de terra são esculpidos para assentar o som: o som anima os corpos de terra fazendo com que caminhem pelo corpo terrestre, animando-o. Na Índia encontramos o entendimento de que houve um som primordial – entoado por ióguis através do som Ohm, Aum ou Ong – que em algum momento vibrou e dele passaram a ressoar outros sons que foram animando o universo. Em consonância, a ciência tem como principal hipótese para o “início” do universo a existência de uma grande explosão, forte vibração chamada de Big Bang e a bíblia diz que no princípio era o verbo.

Nossa proposta é de uma prática intensa totalmente assentada no ritmo e no som. Em alguns momentos durante a vivência, sem prejuízo à precisão e coerência dos ensinamentos tradicionais, existe o convite ao experimento livre dos movimentos do corpo, à dançar integrando os exercícios anteriores, embalados pela musica. O som aqui é um grande mestre e a experiência dos sons primordiais é a principal guia da prática. A dimensão musical e do som é cuidadosa e criteriosamente elaborada dentro da articulação com o tema proposto e das condições dos participantes. Com base nas técnicas de naad yoga, na cultura popular e nos saberes tradicionais, através do som e da música recebemos inspirações, os elementos simbólicos são enriquecidos e proporciona-se uma experiência imersiva no tema escolhido e de cada participante em seu próprio universo. Para isso o professor utiliza da própria voz, de instrumentos percussivos, do violão e de recursos eletrônicos, além da reprodução de gravações musicais selecionadas. Os participantes também são convidados a reproduzirem sons específicos com a voz, de modos como os propostos tanto pelas técnicas de naad yoga quanto pela cultura popular. Ao longo da relação estabelecida entre o professor e os participantes, a composição da prática vai se adequando melhor às demandas do trabalho.

Efeitos possíveis, observados com a prática regular, são o fortalecimento do sistema nervoso, restauração de trilhas de memória, fortalecimento dos sistemas endócrino e imunológico, melhoria da circulação sanguínea, e redução do estresse e da ansiedade. Outro efeito observado na prática regular é o descobrimento de uma força interna capaz de romper com padrões limitantes de pensamento e comportamento. Para que efetivamente tenhamos uma mudança em nossa qualidade de vida, no sentido de uma relação saudável com nossa natureza, é preciso que a mudança individual seja acompanhada por uma mudança societária em nosso modo, que é coletivo, de produzir e reproduzir nossa existência no planeta. Contudo, essa intervenção à nível individual, mesmo que paliativa, é indispensável. Neste sentido, essa tecnologia milenar nos auxilia a mobilizar recursos internos para uma vida cada vez mais plena e realizada, em que seres livres, autônomos e soberanos de si, participam da comunidade onde vivem influenciando, com sua presença autêntica, a manifestação da praxis de um mundo melhor para se viver, em comunhão com todos os seres que nele habitam.

Esse é só mais um convite em meio a tantos que vieram antes para que você venha se encontrar a si, conosco!