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Analisando o rapper Sant através da filosofia da linguagem

No parágrafo número 23 do livro ‘Investigações Filosóficas’, Ludwig Wittgenstein desenvolve o conceito de jogo de linguagem, que serve para descrever a multiplicidade de formulações úteis da comunicação. Para exemplificar, ele descreve algumas tipografias (p. 22): Dar ordens e agir segundo ordens; Descrever um objeto segundo a aparência ou por medição; Produzir um objeto segundo uma descrição (desenho); Informar um acontecimento; Fazer conjecturas sobre um acontecimento; Propor uma hipótese e prová-la; Apresentar os resultados de um experimento mediante tabelas e diagramas.

O número de possibilidades, contudo, segundo o próprio autor, é infinito, extravasando sua pequena lista exemplar, uma vez que a língua se constrói constantemente, passando por eternas renovações, nas quais morrem algumas formas de linguagem e nascem outras. É neste contexto que se pode dizer que o rapper Sant utiliza em suas músicas uma forma nova (dentro do contexto maior da história da humanidade) de comunicação/linguagem. O rap, em especial no modo expressado na música que aqui analisamos, tanto descreve situações e fatos quanto constrói um argumento ensaístico, embora nem sempre este último venha acompanhado de uma conclusão explícita e redonda, como em sua contrapartida em prosa.


A recusa implícita de Sant em amarrar seus argumentos com fraseamentos finais que concluam o sentido do “ensaio” em suas músicas serve, conscientemente ou não, para afastar os pontos da ambiguidade gerada pelas palavras de cunho menos materialistas. Isto pode ser explicado por John Locke, em ‘Ensaio sobre o Entendimento Humano” (1690), mais especificamente no trecho da Teoria do Abuso:

Os homens falam uns com os outros e discutem entre si por meio de palavras, cujo significado não foi acordado entre eles, com base no engano de que o significado comum das palavras está estabelecido de modo certo e de que as ideias precisas a que correspondem são perfeitamente conhecidas e que seria vergonhoso ignorá-las. Mas, ambas essas suposições são falsas: nenhum nome de ideias complexas é tão bem estabelecido de modo a determinar significados a tal ponto que sejam usados de modo constante para se referir precisamente às mesmas coisas. (p. III, 10, 22)

Ou seja, para evitar o que Locke denomina de mau uso da linguagem, Sant descreve incessantemente o turbilhão de fatos e sentimentos correlacionados que constroem seu ponto e finaliza lembrando que isso é o que determina para ele o próprio ponto. Isso fica perfeitamente exemplificado em “O Que Separa os Homens dos Meninos”, música que fala dos traumas que determinam o amadurecimento prematura de rapazes favelados a homens brutalizados pelo cotidiano violento. Os algozes que o empurram para uma homificação (palavras minhas) são: abandono paternal, violência urbana, falta de capital para consumo em uma sociedade capitalista, ser fruto de uma gravidez indesejada, ressentimento dentro do núcleo familiar, racismo etc. Esse contexto é o alicerce de um argumento construído a partir de cenografia e descrição sentimental. E isso se dá dessa forma justamente porque ‘trauma’ é uma palavra sem consenso total na mente dos homens que a comunicam. O que separa os homens dos meninos? Eu responderia pela palavra que ele, Sant, se nega a dizer, mas assim, se perderia a precisão do tipo de trauma ao qual se refere, do sentido de trauma que ele emprega.

Essa argumentação com base em contexto mais do que em palavras abstratas encontra eco também na obra de Wittgenstein, para quem de pouco adianta estudar a linguagem por uma perspectiva essencialista e que se foca tão somente no aprendizado de substantivos de conotação visual mais “óbvias”/concretas e menos simbólicas/etéreas. Afinal, um numeral utilizado numa interação de cunho mercantil gravita em torno abstrações pouco palpáveis, como transação monetária, valor, mercadoria, etc., diferentemente de objetos físicos e materiais de utilização explícita, como uma cadeira, uma mesa. Wittgenstein sustenta, justamente a partir de comparações desse cunho, que a linguagem necessita de contexto em qualquer manifestação dela. Nisso, vê-se que o contexto do glossário e das construções frasais e ritmadas do rapper Sant se dão dentro um grande espectro cultural chamado Hip-Hop e dos contextos socioeconômicos que, dentro de uma geopolítica local, determina em algum grau a personalidade do músico e as expressões que dela derivam. A desigualdade da região metropolitana do Rio de Janeiro, desenvolvida a partir do colonialismo europeu e das escravidões indígenas e africanas, constrói uma vida de miséria e ameaça genocida por parte do estado aos pretos e pobres nascidos nas zonas desfavorecidas dos municípios que compõem tal região. De pele marrom, baixas condições sociais de nascença e vítima do abandono paternal, Sant se criou no bairro de Pilares, na Zona Norte da capital, um âmbito de classe média baixa afetado por tiroteios nas comunidades vizinhas e assaltos no asfalto.

No seguinte verso de O Que Separa Os Homens Dos Meninos fica claro o efeito psicológico do ambiente sobre a amargura do personagem que ele apresenta como sendo a si mesmo: “Sem espaço para emoções, a rua ensina // Que se eu seguir só o meu coração, me fodo na próxima esquina”; da mesma forma, em O Tempo Passou, o rapper explica como o âmbito familiar, influenciado em constância pelo ambiente externo, o moldou conjuntamente às ruas: “Pai e vó num boteco // Patrícia no hospital // Parindo um filho que não pediu pra nascer // Mas nasci // Então aí vou eu e prepare você // Pronto pra voar // Mudávamos como nômades // Criação mais complicada que o livro de Gêneses”. Esse cadinho de situações infortúnios permeia a linguagem do músico, situando-nos em quais sentidos ele emprega em suas metáforas e no porquê da escolha por determinados termos em detrimentos de outros. Erudição e gírias são escolhidas a partir do léxico que um desenvolve. Como diria o filósofo: “Os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo.”


A hipótese Sapir-Whorf dos filósofos estadunidenses Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf aprofunda a compreensão da relação de mutualismo entre essas limitações quando levado em conta que o termo meu mundo pode facilmente ser compreendido como a cultura de certa população, eles defendem que a forma de comunicação expressa os entendimentos do mundo daquele povo, a linguagem agindo como uma marca de pertencimento dentro de determinada vivência sendo um sistema que codifica o pensamento do povo. É válido analisar melhor esse levantamento pelo trecho traduzido pelo professor Danilo Marcondes de Whorf em The Relation of Habitual Thought and Behavior to Language: A linguagem é um guia para a “realidade social”. Embora a linguagem não seja normalmente considerada de interesse essencial para os estudiosos de ciências sociais, condiciona fortemente nosso pensamento sobre problemas e processos sociais. Os seres humanos não vivem apenas no mundo objetivo, tampouco no mundo das atividades sociais como as compreendemos comumente, mas se encontram sob a influência da língua específica que se tornou o meio de expressão de sua sociedade. Elucidasse também a fator sobre a linguagem por sua vez também exerce influência no imaginário popular, movimentações percebidas e expostas não só pelos filósofos, mas contemporaneamente pelo rapper no verso “Essa é a manifestação de um filho pródigo //Rima em código, linguagem suburbana // Viagem subumana, é lógico” onde traduz a percepção de que sua manifestação só cabe dentro da linguagem suburbana, que é moldada pelas ausências que o contexto regional carrega. Dessa sequência de observações é possível concluir que o Sant não só bebe de seu contexto na produção de sua arte, como o transforma quando influencia a mentalidade da população através de uma revolução linguística.

Referências Bibliográficas

WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus, ed.Edusp, S.Paulo.
WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas, Os Pensadores, ed.Abril, 1975, 1a.ed.
LOCKE, J. Ensaio acerca do entendimento humano. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os Pensadores)
MARCONDES, D. 2010. Textos básicos de linguagem. De Platão a Foucalt. Rio de Janeiro: Zaha